Visto da rua o prédio não parecia tão grande. Ninguém daria nada por ele. É verdade que se viam as filas das janelas até o quarto andar. Talvez fosse a tinta desbotada que tirasse a impressão de enormidade. Parecia um velho sobrado como os outros, apertado na ladeira do Pelourinho, colonial, ostentando azulejos raros. Porém era imenso. Quatro andares, um sótão, um cortiço nos fundos, a venda do Fernandes na frente, e atrás do cortiço uma padaria árabe clandestina, cento e dezesseis quartos, mais de seiscentas pessoas. Um mundo, um mundo fétido, sem higiene e sem moral, com ratos, palavrões e gente. Operários, soldados, árabes de fala arrevesada, mascates, ladrões, prostitutas, costureiras, carregadores, gente de todas as cores, de todos os lugares, com todos os trajes, enchiam o sobrado. Bebiam cachaça na venda do Fernandes e cuspiam na escada, onde por vezes mijavam. Os únicos inquilinos gratuitos eram os ratos.
(Trecho do romance "Suor", de Jorge Amado, que retrata a vida nos cortiços de Salvador na década dos anos '30).
Já imaginou um lugar assim no meio de uma pandemia como a que estamos vivendo há tantos meses? Como as pessoas pobres conseguem se isolar tomando em conta a arquitetura das favelas, a falta de higiene e de saneamento básico?
Como você pode pedir aos trabalhadores que enfrentam ônibus ou trens lotados todos os dias para ir ao serviço que mantenham distanciamento social?
"O brasileiro pula no esgoto e não acontece nada", falas desse tipo e os piores exemplos dados pelo nosso presidente fizeram com que as pessoas simples encarassem a doença e a morte como fatos comuns. "Morrer tudo mundo vai mesmo..."
Sete cestas básicas, umas pequenas e outras enormes, ajuda financeira de amigos, bolsa de aulas de yoga, auxílio emergencial do governo promulgado pelo congresso nacional e apoio da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, que faz a função de Secretaria de Cultura da cidade onde moro, São José dos Campos, SP. Uma leitura dramática e a apresentação dos meus espetáculos via internet. "Artista de rua online". Ter a sorte de morar sozinho e em casa ter um pedacinho de terra para plantar. Alimentar-se em grande parte da própria colheita.
Finalmente, a lei emergencial para trabalhadores da cultura Aldir Blanc, que chega em boa hora para dar suporte enquanto aguardamos a tão esperada vacina. Três semanas ensaiando o meu espetáculo, "Na Rua, as Peripécias do Mímico Andarilho", adaptado à pandemia, que foi filmado num estúdio por causa do novo surto da doença. O importante é que conseguimos fazer um registro em que apresento um verdadeiro "andarilho". Um artista, morador de rua, isolado no seu habitat natural. Na história, concentrada em três metros de largura de palco, através do meu palhaço "mendigo", inspirado no personagem "Cabaça", do romance de Jorge Amado apresentado acima, tento expressar os fatos marcantes desse ano de 2020 que está se encerrando.
Cabaça mora debaixo da escada do cortiço a que se refere o romance e tem um ratinho de estimação. O personagem da peça não tem endereço fixo e, na trama, estabelece-se no cruzamento da "Rua da Tristeza" com a "Rua da Alegria". Ele tem como mascote um ratinho de corda que carrega no bolso do seu fraque.