terça-feira, 22 de dezembro de 2020

À espera da Vacina...

 Visto da rua o prédio não parecia tão grande. Ninguém daria nada por ele. É verdade que se viam as filas das janelas até o quarto andar. Talvez fosse a tinta desbotada que tirasse a impressão de enormidade. Parecia um velho sobrado como os outros, apertado na ladeira do Pelourinho, colonial, ostentando azulejos raros. Porém era imenso. Quatro andares, um sótão, um cortiço nos fundos, a venda do Fernandes na frente, e atrás do cortiço uma padaria árabe clandestina, cento e dezesseis quartos, mais de seiscentas pessoas. Um mundo, um mundo fétido, sem higiene e sem moral, com ratos, palavrões e gente. Operários, soldados, árabes de fala arrevesada, mascates, ladrões, prostitutas, costureiras, carregadores, gente de todas as cores, de todos os lugares, com todos os trajes, enchiam o sobrado. Bebiam cachaça na venda do Fernandes e cuspiam na escada, onde por vezes mijavam. Os únicos inquilinos gratuitos eram os ratos.

(Trecho do romance "Suor", de Jorge Amado, que retrata a vida nos cortiços de Salvador na década dos anos '30).

Já imaginou um lugar assim no meio de uma pandemia como a que estamos vivendo há tantos meses?  Como as pessoas pobres conseguem se isolar tomando em conta a arquitetura das favelas, a falta de higiene e de saneamento básico?

Como você pode pedir aos trabalhadores que enfrentam ônibus ou trens lotados todos os dias para ir ao serviço que mantenham distanciamento social? 

"O brasileiro pula no esgoto e não acontece nada", falas desse tipo e os piores exemplos dados pelo nosso presidente fizeram com que as pessoas simples encarassem a doença e a morte como fatos comuns. "Morrer tudo mundo vai mesmo..."

Sete cestas básicas, umas pequenas e outras enormes, ajuda financeira de amigos, bolsa de aulas de yoga, auxílio emergencial do governo promulgado pelo congresso nacional e apoio da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, que faz a função de Secretaria de Cultura da cidade onde moro, São José dos Campos, SP. Uma leitura dramática e a apresentação dos meus espetáculos via internet. "Artista de rua online". Ter a sorte de morar sozinho e em casa ter um pedacinho de terra para plantar. Alimentar-se em grande parte da própria colheita.

Finalmente, a lei emergencial para trabalhadores da cultura Aldir Blanc, que chega em boa hora para dar suporte enquanto aguardamos a tão esperada vacina. Três semanas ensaiando o meu espetáculo, "Na Rua, as Peripécias do Mímico Andarilho", adaptado à pandemia, que foi filmado num estúdio por causa do novo surto da doença. O importante é que conseguimos fazer um registro em que apresento um verdadeiro "andarilho". Um artista, morador de rua, isolado no seu habitat natural. Na história, concentrada em três metros de largura de palco, através do meu palhaço "mendigo", inspirado no personagem "Cabaça", do romance de Jorge Amado apresentado acima, tento expressar os fatos marcantes desse ano de 2020 que está se encerrando.

Cabaça mora debaixo da escada do cortiço a que se refere o romance e tem um ratinho de estimação. O personagem da peça não tem endereço fixo e, na trama, estabelece-se no cruzamento da "Rua da Tristeza" com a "Rua da Alegria". Ele tem como mascote um ratinho de corda que carrega no bolso do seu fraque.


Foto de Paulo Amaral


terça-feira, 26 de maio de 2020

Andarilho fica em casa


E agora, quando finalmente eu ia virar Mímico Andarilho, fui obrigado a ficar em casa por causa da “Pandemoníaca”. Pan porque afeta o mundo todo e demoníaca pela forma irresponsável como está sendo encarada pelo governo federal. Tristeza que dá raiva e raiva que dá tristeza. Banalização da morte por motivos políticos e econômicos. Não dá para deixar de reconhecer o esforço de governadores, prefeitos e profissionais da saúde, que tentam fazer o melhor que podem num jogo de desinformação articulado por quem está na presidência.

 Agora, fico em casa, mas depois eu vou, viro Andarilho como no começo, lá para meados da década dos anos ’80, quando ia de cidade em cidade, apresentando meu teatro mambembe. Vou carregando uma mínima quantidade de objetos, a mala do espetáculo, o lampião com cruzamento de ruas, figurino, maquiagem e uns poucos apetrechos de uso pessoal.


Vou, mas mantenho como porto entre minhas viagens, alugada, a casinha onde moro há mais de onze anos, assim como à inscrição dos meus espetáculos nos editais da Fundação Cultural, em São José dos Campos.

Curioso tem sido como o meu trabalho na cidade turística de Campos do Jordão, onde “brinco” há mais de duas décadas, foi deixando de rolar com a mudança de infraestrutura até culminar nessa pandemia. A natureza tão revoltada como meu ânimo ante a falta de sentido.

Depois eu vou...
Por agora, enquanto fico em casa, o tempo passa tão depressa que fica difícil de amarrar. Tantas coisas a serem feitas, estudar, treinar, ler, escrever e mexer no meu quintal.

Vou matutando, mexendo, remexendo; do barro aos versos do seu Manoel...

- “Para ser escravo da natureza o homem precisa de ser independente”.
- “Só o silêncio faz rumor no voo das borboletas”.
- “A voz de um passarinho me recita”.
- “Lagartixas piscam para as moscas antes de havê-las”.
- “Em casa de pobre as mariposas preferem fremir peladas”.
- “Cachorro quando vê lesma gosmilha”.
- “Formiga não tem dor nas costas”.
- “Dentro da mata no entardecer o canto dos pássaros é sinfônico”.

Caderno de Andarilho - Manoel de Barros.






quarta-feira, 29 de abril de 2020

"O Apelo da Selva"


Buck era um cachorro de grande porte que morava numa fazenda de uma família de classe média alta, que o tratava como um rei, até que um dia fora raptado e levado à força para puxar trenós na região gelada do Vale do Rio Klondike, no Canadá, onde os homens se aventuravam à procura de ouro no final do século XIX.

O certo é que Buck deixou o meio “civilizado” em que nasceu e se criou para enfrentar todo tipo de adversidades num meio desconhecido. Começava assim a sua luta pela sobrevivência, na qual teve que brigar para ganhar o seu espaço, matar para não ser morto, ter atitude; impor. A sua vida deu um giro de trezentos e sessenta graus e ele virou puro instinto. Nessa dura aventura em terras geladas, passou pelos cuidados de vários donos, até encontrar um homem que o tratava realmente com carinho.

Mas Buck ouvia o clamor da selva, que o chamava para si através do uivado dos seus ancestrais, os lobos. E quando seu dono, último elo civilizatório, veio falecer, ele se juntou aos seus pares, voltando às suas origens.
  
Li esse livro, que no Brasil tem tradução de Monteiro Lobato, há um bom tempo, a pedido de um amigo “conselheiro” que vislumbrava a minha busca como ser humano e artista.

Vem-me essa história à cabeça nesse momento inusual que estamos passando. De repente tudo parou e fomos obrigados a ficar dentro de casa, isolados uns dos outros. Vejo pessoas ficando desesperadas, com tédio, sem saber o que fazer. O bom é que o fato de não poder sair nos obriga a olhar para nós mesmos.
O isolamento, a quarentena, leva-nos a fazer uma viagem interna, a mergulharmos no nosso interior e nos deparamos com a nossa história. Lembramo-nos da infância, das primeiras impressões que tivemos das coisas, as sensações, os cheiros, os sabores...
O universo mágico da brincadeira da criança. Nascemos puros e livres de conceitos e aprendemos através da nossa experiência de troca com o meio, influenciada pela educação que recebemos.

Em tempos de calamidade pública como este é que a gente se questiona sobre temas tais como: “O que é que a gente realmente precisa para viver?”.

Estamos fazendo parte de uma história tirada de um livro de ficção científica. A natureza se vingando dos maus tratos recebidos por parte do ser humano, através de um vírus que foi gerado por ele próprio. O planeta agradecendo pelo intervalo da máquina de produção e consumo. Rios e ar despoluindo e animais tomando conta da “selva de cimento”, agora inabitada, em tempos de isolamento.

A história de Jack London remete ao modo de vida dos povos indígenas que constroem suas malocas e vivem do cultivo, da caça, da pesca e se curam com o uso de plantas medicinais. Vale lembrar que várias doenças foram levadas para as tribos indígenas isoladas por meio do homem “civilizado”.

No começo da revolução industrial, as coisas eram feitas para durar. Hoje, apesar dos avanços tecnológicos, tudo virou descartável. O Brasil, de industrial tornou-se importador e pouco produtor. Vivemos na era do capital improdutivo, em que dinheiro gera dinheiro.

Quem sabe esse momento seja bom para pensarmos na possibilidade de mudança tanto no plano individual como no coletivo. Quem sabe essa crise sensibilize nossos governantes a investir em educação, em incentivo à pesquisa, à ciência, tecnologia e produção industrial própria para termos realmente “Ordem e Progresso” como nação.

Por enquanto, como simples artista de rua, fico com a mensagem tirada do cachorro Buck, que se deixou levar pelo seu instinto e dever comunitário.

APP -  Altos da Vila Paiva - SJC - SP









quinta-feira, 5 de março de 2020

“Ingênuo”


Entre a tristeza e a alegria, entre o medo e a fé, perambula meu sorriso de palhaço. Vou para rua impulsionado por uma louca emoção infantil. Sou ingênuo, acredito na bondade alheia...

Encarar o trabalho no sentido social onde, às vezes, é mais importante o diálogo com as pessoas do que a estética propriamente dita. Se doar, assim como fez o Príncipe Feliz do conto do Escritor Irlandês Oscar Wilde que é o personagem principal da história que apresentamos dentro do projeto “Dois Brincantes e o Príncipe Feliz na Praça do Bairro” ao longo do segundo semestre de 2019, quando contamos com o financiamento do Fundo Municipal de Cultura da cidade de São José dos Campos. O teatro popular no Brasil sempre se caracterizou por refletir a realidade das pessoas mais necessitadas. No meu caso não é só isso, já que quando vou para rua com “a cara e a coragem” acabo levando essa linguagem simples, "ingênua, para todas as camadas sociais. Ainda continuo me apresentando na cidade turística de Campos do Jordão como há vinte e cinco anos atrás, mesmo sem apoio. O que me faz continuar subindo a serra, como fiz no último feriado de carnaval, é a convivência com as pessoas que frequentam a cidade e me conhecem desde longa data, com as quais tenho um trato “humano”.

Cito o exemplo de uma menina de seis anos de idade, há qual “animei” seu aniversário de um ano, que me surpreendeu com seu abraço ou o de um grupo de turistas da cidade de Recife que há oito anos passa o carnaval em Campos e fica feliz quando me vê. Um casal tira uma foto de lembrança comigo enquanto me pergunta se sou italiano. A simpática garota novinha que trabalha na frente de um restaurante recebendo os fregueses me disse em tom animador que quando estou presente na rua é bem melhor, já que a arte, apesar de nem sempre ser valorizada, é muito importante na vida das pessoas. Aliás, os funcionários dos restaurantes em geral, na sua maioria jovens, me tratam com verdadeiro carinho. O melhor momento do carnaval, sem duvida, foi no Domingo de manhã, quando sentei no palco vazio da concha acústica da praça de Capivari caracterizado de palhaço, na saída da missa, e tirei da minha pequena mala a estante e a pasta com partituras, para tocar o repertório de música popular que pratico durante horas na minha flauta transversal, acompanhado pelas bases de play back amplificadas pela caixinha de som presa à minha cintura. No fim tinha uma galera sentada ao meu lado, assistindo e batendo palmas a cada música. A acústica do local envolve a praça inteira. O show acabou com um dinheiro razoável na minha caneca de papelão e um casal de turistas que me conhece há anos tirando foto comigo orgulhosos de saber que toco um instrumento.

Coincidentemente a última música que toquei foi o “Ingênuo”, cancão de autoria de Pixinguinha e Benedito Lacerda.

"Eu fui ingênuo porque acreditei no amor. Mas, pelo menos, jamais me entreguei à dor..."