domingo, 31 de dezembro de 2023

O Professor Substituto de Artes

 

No pátio, três meninas aguardando a hora passar sentadinhas em bancos de cimento assistindo ao jogo de pingue-pongue dos meninos maiores. Duas delas, de uns oito anos de idade, inseparáveis, e a outra, menor, sozinha.

O resto da criançada da escola foi no passeio ao zoológico e, quando o professor substituto chegou, acompanhado pelo guardinha, deparou-se com que sua aula do convênio entre as Secretarias de Educação e a Fundação Cultural, em SJC.-SP, pela primeira vez, terá que ser para um grupo de tão só três. Percebendo tamanho desafio, o responsável da escola, em tom sugestivo, tenta animá-lo dizendo-lhe: “Use a criatividade”.

Apavorado, o substituto olha para as crianças, se apresenta e depois pergunta: - “O que vamos fazer?”. Duas horas até os pais das meninas chegarem e ele ali, na frente de uma sala de aula, para cobrir um professor de Jazz realizando uma “vivência musical”. Como formar um bloco de samba somente com três alunas?

Recostado na lousa ele enxerga um monte de carteiras vazias e, perto dele, sentadas na sua frente, duas meninas morenas inseparáveis parecendo irmãs e lá atrás uma menina menor, também morena, de olhar meigo e tímido, de rosto redondinho, quietinha e calada. Para piorar, da janela aberta ao fundo da sala, vem o barulho da rua movimentada.

O professor indica sua mochila dizendo que  carrega vários instrumentos de percussão nela;. o que não anima muito as meninas que propõem ir brincar no pátio. Ele insiste: - “Vamos apreender música juntos”. – “Alguém tem uma caneta hidrográfica para escrever na lousa?”.

Crianças carregam diferentes objetos nas suas mochilas, desde garrafinha de água, lanchinho, bola, corda de pular ou, como nesse caso, caneta hidrográfica para sorte de substituto. – “Muito bem, muito obrigado”. E agora em tom de palhaçada: - “Você que está no fundo, chega mais perto, por favor, que eu não posso gritar porque tenho problema nas cordas vocais”. A menina menorzinha obedece, senta perto e fica olhando de olho arregalado. Para uma melhor comunicação a estratégia do substituto tem sido encarnar uma personagem engraçada de desenho animado, experiência da sua profissão de palhaço improvisador de rua.

Desenhando na lousa Semínima, Colcheia e Semicolcheia ele pergunta para as crianças se sabem o que significam essas figuras e elas respondem que são “Notas Musicais”. Ai ele rabisca um pentagrama e a escala de Do, para depois puxar da sua mochila uma flauta doce e tocar as notas da escala. Depois disso uma das meninas traz da secretaria uma flauta doce para cada criança. Agora tudo vira barulheira. Nessa desorganização muito bem organizada o substituto tenta passar conceitos básicos de ritmo como tempo e contratempo.

E assim vai passando a hora entre sons, barulho e palhaçada.

Pelo geral as aulas nas escolas têm sido dessa forma: as crianças sentam em roda no chão, o cesto de lixo vira um surdo e depois da mochila vão surgindo os instrumentos para formar a batucada. Tamborim, ganzá e reco reco construídos com material reciclável, agogô, dois pedacinhos de cabo de vassoura para marcar o ritmo, entre outros. O substituto dirige o samba tocando pandeiro e apitando com apito na boca. Sempre tem uma criança que naturalmente sai sambando no meio da turma. Autores como Tom Jobim são nomeados ao referir-se a alguma música que eles conhecem como “Garota de Ipanema”.

Dessa vez, no final da aula, o substituto fica aliviado enquanto come bolachinhas e toma o suco oferecido  pela escola junto às três meninas para depois ser convidado por estas a brincar no pátio. Ele afirma: - “Eu não sou criança”. Sendo rebatido pelas meninas que respondem: - “Não é, mas parece...”.

 

 


 

 

 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A menina e a coleira...

 

Dos animais de estimação que as pessoas criam os mais comuns são os cachorros e os gatos. Os comércios que atendem um público com certo status social ou poder aquisitivo maior acabam tendo que se adaptar a essa realidade, permitindo a permanência dos animaizinhos integrantes da família dentro dos estabelecimentos. Estes, pelo geral, presos a coleiras ou, se forem menores, até dentro de carrinhos tipo de bebê.

Trabalhando na frente de restaurante na passagem de pessoas em Campos do Jordão costumo ver cenas das mais inusitadas como as de cachorro vira-latas querendo brigar com cachorro de raça de família abastada.

Do que tenho presenciado nada supera a experiência que tive um dia desses, na temporada de inverno, enquanto estava me apresentando.  De repente vejo uma criança linda, loira, de olhos azuis, de uns seis ou sete anos de idade, presa a uma cólera, passeando com seu avô. Fiquei tão chocado que parei tudo e fui atrás deles. A menina parecia saudável, mas o seu olhar ficava um pouco perdido e ela não se comunicava com o meio que a rodeava. Falei com o vô, um senhor elegante, que me disse que ela tem uma doença rara que os médicos não conseguem detectar nem no Brasil nem nos Estados Unidos, que eles gastam na faixa de uns trinta mil reais por mês em convênio médico e que ela frequenta uma escola de crianças normais de forma de ser incluída na sociedade. Perguntei se eu podia tentar me comunicar com ela e, sendo autorizado, enchi uma bexiga dessas de criar figuras e a coloquei na frente da menina. Ela simplesmente a afastou com uma mão. O senhor me disse “não adianta, ela fica no seu mundo e ainda não fala”. “Já tentamos de tudo e chegamos à conclusão de que o problema dela é espiritual”. Espiritual? Perguntei. “Sim, a gente acha que é carma”. Dito isso como conclusão parece que ele nada mais iria escutar do que eu dissesse . Mesmo assim argumentei: Bom, menos mal que vocês têm dinheiro para poder dar uma estrutura mínima e a procura de uma solução para o problema dela. Também comentei que em São José dos Campos, cidade onde eu moro, existe um serviço público municipal gratuito chamado “Integra” que atende pessoas com todo tipo de deficiência e que lá há uma estrutura parecida como a que ele me disse que oferece o convênio para sua neta, com psicólogo, terapeuta ocupacional, etc. e que ainda oferece oficinas de arte.

Despedindo-me deles dois, várias coisas passaram pela minha cabeça. A primeira é que dinheiro não compra tudo. A segunda foi: "Olha só, gente rica acredita em carma". A terceira, o questionamento de porque eles têm tanto medo de perder o controle não deixando a menina solta...


Imagem de internet