Gustavo fica atrás de duas lentes
daquelas tipo fundo de garrafa observando tudo na defensiva. Ele responde
“Não!” na frente de qualquer situação ainda que seja do seu agrado. Soldado de
si mesmo, seus óculos formam uma trincheira de onde atira nãos para todo lado.
Gustavo, assim como as outras crianças da aula de teatro, faz do labirinto
formado pelos pés das cadeiras da sala a sua casa, onde se protege do mundo lá
fora. Cadeiras, lentes grossas e o seu direito de ser criança o mantêm a salvo
dos adultos.
“Cinco minutos” é o código criado
para ficar brincando no parquinho, antes da aula, enganando assim o professor
de teatro, que faz o papel proposital de bobo enquanto cria um diálogo com a
maior paciência tentando desvelar os mistérios que jazem por trás do
comportamento dos meninos de hoje em dia afetados diretamente pelo convívio com
a internet.
O preconceito continua existindo
mesmo que supostamente haja uma maior tolerância na sociedade. Crianças de dez
anos sexualizando tudo.
- Você gosta de futebol, Gustavo?
- Sim, eu gosto - ele responde -
- Joga em qual posição? – pergunta
o professor -
- Goleiro - Ele disse -
- Você segura bem a bola? - Indaga
inocentemente o professor -
- “Lá, ele” – ele responde –
E, ante o olhar desconcertado do
professor, ele sugere procurar a resposta no Google.
"Lá ele" é uma expressão
baiana usada principalmente para proteger-se de frases com duplo sentido
sexual, funcionando como uma negação imediata e evasiva.
Gustavo, assim como as outras crianças, compara os
adultos com as personagens que eles assistem no "Tralalero Tralalá",
um meme popular italiano criado por Inteligência artificial, originado no
TikTok, que apresenta uns personagens bizarros, como um tubarão de tênis, um
crocodilo com cabeça de avião ou uma bailarina com uma xícara de cappuccino no
lugar de cabeça.
O meme é apresentado por vídeos curtos com frases sem sentido que fazem parte
de uma tendência de conteúdo digital repetitivo e viciante que as crianças
acham o máximo.
O professor de teatro, por ser careca e ter olhos esbugalhados, passa a ser o
"Tung Tung Tung Sahur", um boneco de madeira que carrega um taco.
A vantagem de dar aula de arte em escolas públicas municipais pelo convênio
entre a Fundação Cultural e a Secretaria de Educação numa cidade moderna como
São José dos Campos é que toda sala de aula possui um projetor onde se pode
assistir às imagens do computador diretamente na lousa.
Com a briga entre professor e aluno pelo computador estabelecida, Gustavo chega
primeiro ao comando digital e mostra para o professor o que as crianças gostam
hoje em dia; vídeos engraçados criados por inteligência artificial onde, pelo
geral, aparecem pessoas mais velhas, desdentadas, contrapostas por pessoas
jovens onde acontecem piadas de mau gosto.
O professor, por ser pessoa idosa, acaba sendo retratado como uma dessas
pessoas mais velhas.
A luta continua...
Sabendo que o código é o da trapaça, o professor traz para a sala de aula um
livro com histórias de "Pedro Malasartes" o qual causa pouco efeito.
Como contra-ataque, o professor instiga as crianças a lerem livros para não
serem enganadas por memes de internet e terem senso crítico.
A grande descoberta...
Não é que o professor descobre que Gustavo, por trás das suas lentes, adora
cinema assim como ele?
E é através do cinema mudo que o professor consegue levar as crianças para uma
linguagem que eles desconhecem. No primeiro dia passa do Youtube "As
Bicicletas de Belleville", um filme de animação expressionista canadense
de 2003 de uma hora e vinte minutos de duração. Os olhos de Gustavo ficam ainda
maiores através dos óculos.
No segundo dia vem a grande descoberta: "Buster Keaton". Ele é o
próprio Pedro Malasartes, já que chega do nada e sem nada no bolso, faz um
monte de trapaças e vai embora com a mocinha do filme. Tudo antigo: roupas,
cenários, carros, etc. E, no final, o professor faz questão das crianças
fazerem o cálculo da diferença entre 1922, ano do filme, com 2025.
No terceiro dia o professor consegue acessar o seu
login do site Mubi do computador da escola e passar o filme mudo de animação
“Meu amigo Robô” de uma hora e trinta e quatro minutos de duração para as
crianças. Gustavo assiste a função sentado na primeira fileira da plateia/sala
de aula.
Na história, ambientada na cidade de Manhatan dos
anos 80, um cachorro cansado da solidão compra um robô com o qual estabelece
uma estreita amizade.
Gustavo, ao perceber detrás das suas lentes que
todas as personagens, menos o robô, são animais que se comportam como humanos,
pergunta ao professor se os humanos ficam no zoológico da cidade...

Adorei ler através das lentes
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