domingo, 26 de maio de 2024

Água, essencial para vida.

 

O menino Noha se sente indestrutível, assim como as personagens dos desenhos japoneses de Anime que ele assiste direto no notebook da sua mãe, quando está em casa, ou no celular do seu pai quando vai para a casa dele. Com nove anos, Noha se multiplica, crescendo um pouco mais a cada dia, mudando de tamanho e ganhando forças para se proteger das dores ocasionadas pelas brigas familiares. 

Ele passa muito tempo sozinho, brincando no seu mundo de fantasia, repetindo posturas de defesa das artes marciais que aprende com seus super-heróis preferidos. 

Noha adora hambúrguer e detesta ter que tomar o leite hiper adocicado servido no refeitório da escola quando se esquece de levar o seu próprio lanche.

Ele pensa: - "Como se pode sair de tão confortável mundo para participar de uma turma do teatro?"

 Que chato!

Pior é ter a obrigação de se comunicar com os outros quando o professor propõe exercícios grupais: “É com a gente, Noha...”.

Ufa! 

No fim ele acaba cedendo e até gosta de fazer parte nas representações ao final de cada aula. Às vezes falta, mas sempre acaba voltando.

Para a criança tudo é natural, portanto Noha nem se lembra da maravilhosa história que criou em que alienígenas vem confiscar à água da Terra para levá-la para o planeta deles, mas acabam se arrependendo deixando-a para os humanos tomarem conta dela.


domingo, 31 de dezembro de 2023

O Professor Substituto de Artes

 

No pátio, três meninas aguardando a hora passar sentadinhas em bancos de cimento assistindo ao jogo de pingue-pongue dos meninos maiores. Duas delas, de uns oito anos de idade, inseparáveis, e a outra, menor, sozinha.

O resto da criançada da escola foi no passeio ao zoológico e, quando o professor substituto chegou, acompanhado pelo guardinha, deparou-se com que sua aula do convênio entre as Secretarias de Educação e a Fundação Cultural, em SJC.-SP, pela primeira vez, terá que ser para um grupo de tão só três. Percebendo tamanho desafio, o responsável da escola, em tom sugestivo, tenta animá-lo dizendo-lhe: “Use a criatividade”.

Apavorado, o substituto olha para as crianças, se apresenta e depois pergunta: - “O que vamos fazer?”. Duas horas até os pais das meninas chegarem e ele ali, na frente de uma sala de aula, para cobrir um professor de Jazz realizando uma “vivência musical”. Como formar um bloco de samba somente com três alunas?

Recostado na lousa ele enxerga um monte de carteiras vazias e, perto dele, sentadas na sua frente, duas meninas morenas inseparáveis parecendo irmãs e lá atrás uma menina menor, também morena, de olhar meigo e tímido, de rosto redondinho, quietinha e calada. Para piorar, da janela aberta ao fundo da sala, vem o barulho da rua movimentada.

O professor indica sua mochila dizendo que  carrega vários instrumentos de percussão nela;. o que não anima muito as meninas que propõem ir brincar no pátio. Ele insiste: - “Vamos apreender música juntos”. – “Alguém tem uma caneta hidrográfica para escrever na lousa?”.

Crianças carregam diferentes objetos nas suas mochilas, desde garrafinha de água, lanchinho, bola, corda de pular ou, como nesse caso, caneta hidrográfica para sorte de substituto. – “Muito bem, muito obrigado”. E agora em tom de palhaçada: - “Você que está no fundo, chega mais perto, por favor, que eu não posso gritar porque tenho problema nas cordas vocais”. A menina menorzinha obedece, senta perto e fica olhando de olho arregalado. Para uma melhor comunicação a estratégia do substituto tem sido encarnar uma personagem engraçada de desenho animado, experiência da sua profissão de palhaço improvisador de rua.

Desenhando na lousa Semínima, Colcheia e Semicolcheia ele pergunta para as crianças se sabem o que significam essas figuras e elas respondem que são “Notas Musicais”. Ai ele rabisca um pentagrama e a escala de Do, para depois puxar da sua mochila uma flauta doce e tocar as notas da escala. Depois disso uma das meninas traz da secretaria uma flauta doce para cada criança. Agora tudo vira barulheira. Nessa desorganização muito bem organizada o substituto tenta passar conceitos básicos de ritmo como tempo e contratempo.

E assim vai passando a hora entre sons, barulho e palhaçada.

Pelo geral as aulas nas escolas têm sido dessa forma: as crianças sentam em roda no chão, o cesto de lixo vira um surdo e depois da mochila vão surgindo os instrumentos para formar a batucada. Tamborim, ganzá e reco reco construídos com material reciclável, agogô, dois pedacinhos de cabo de vassoura para marcar o ritmo, entre outros. O substituto dirige o samba tocando pandeiro e apitando com apito na boca. Sempre tem uma criança que naturalmente sai sambando no meio da turma. Autores como Tom Jobim são nomeados ao referir-se a alguma música que eles conhecem como “Garota de Ipanema”.

Dessa vez, no final da aula, o substituto fica aliviado enquanto come bolachinhas e toma o suco oferecido  pela escola junto às três meninas para depois ser convidado por estas a brincar no pátio. Ele afirma: - “Eu não sou criança”. Sendo rebatido pelas meninas que respondem: - “Não é, mas parece...”.

 

 


 

 

 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A menina e a coleira...

 

Dos animais de estimação que as pessoas criam os mais comuns são os cachorros e os gatos. Os comércios que atendem um público com certo status social ou poder aquisitivo maior acabam tendo que se adaptar a essa realidade, permitindo a permanência dos animaizinhos integrantes da família dentro dos estabelecimentos. Estes, pelo geral, presos a coleiras ou, se forem menores, até dentro de carrinhos tipo de bebê.

Trabalhando na frente de restaurante na passagem de pessoas em Campos do Jordão costumo ver cenas das mais inusitadas como as de cachorro vira-latas querendo brigar com cachorro de raça de família abastada.

Do que tenho presenciado nada supera a experiência que tive um dia desses, na temporada de inverno, enquanto estava me apresentando.  De repente vejo uma criança linda, loira, de olhos azuis, de uns seis ou sete anos de idade, presa a uma cólera, passeando com seu avô. Fiquei tão chocado que parei tudo e fui atrás deles. A menina parecia saudável, mas o seu olhar ficava um pouco perdido e ela não se comunicava com o meio que a rodeava. Falei com o vô, um senhor elegante, que me disse que ela tem uma doença rara que os médicos não conseguem detectar nem no Brasil nem nos Estados Unidos, que eles gastam na faixa de uns trinta mil reais por mês em convênio médico e que ela frequenta uma escola de crianças normais de forma de ser incluída na sociedade. Perguntei se eu podia tentar me comunicar com ela e, sendo autorizado, enchi uma bexiga dessas de criar figuras e a coloquei na frente da menina. Ela simplesmente a afastou com uma mão. O senhor me disse “não adianta, ela fica no seu mundo e ainda não fala”. “Já tentamos de tudo e chegamos à conclusão de que o problema dela é espiritual”. Espiritual? Perguntei. “Sim, a gente acha que é carma”. Dito isso como conclusão parece que ele nada mais iria escutar do que eu dissesse . Mesmo assim argumentei: Bom, menos mal que vocês têm dinheiro para poder dar uma estrutura mínima e a procura de uma solução para o problema dela. Também comentei que em São José dos Campos, cidade onde eu moro, existe um serviço público municipal gratuito chamado “Integra” que atende pessoas com todo tipo de deficiência e que lá há uma estrutura parecida como a que ele me disse que oferece o convênio para sua neta, com psicólogo, terapeuta ocupacional, etc. e que ainda oferece oficinas de arte.

Despedindo-me deles dois, várias coisas passaram pela minha cabeça. A primeira é que dinheiro não compra tudo. A segunda foi: "Olha só, gente rica acredita em carma". A terceira, o questionamento de porque eles têm tanto medo de perder o controle não deixando a menina solta...


Imagem de internet


sábado, 17 de dezembro de 2022

Ciclo e Reciclo com o Mímico Andarilho

 

Foi no isolamento da pandemia que surgiu a ideia, quando observava pelas grades do portão de casa gente de todo tipo vindo a pé, de bicicleta, de moto ou até de carro popular com bancos detrás arrancados, catar o “lixo reciclável” da minha rua para ser vendido em algum ferro velho próximo.

Quando vi publicado um edital de audiovisual do fundo municipal de São José dos Campos com orçamento bem baixo senti que era uma boa oportunidade de realizar o projeto de produção de vídeo documentário, já que a concorrência seria menor. Consegui uma parceria com a escola municipal de ensino fundamental onde estudou meu filho e apoio de profissionais que encararam o desafio mesmo ganhando pouco e me inscrevi. Depois comecei frequentar a oficina de fotografia do Gustavo Fataki na casa de cultura “Eugênia da Silva”, no Novo Horizonte, que fica num bairro bem distante do meu.

Com o “Ciclo e Reciclo com o Mímico Andarilho” passamos em primeiro lugar no edital. Agora ia poder comprar a minha primeira câmera de entrada.

Tudo foi difícil. Primeiro à compra da câmera, que devia ser em parcelas a serem pagas com meus recebimentos mensais pelas minhas funções no projeto. Contei com a generosidade do Gustavo que se dispôs a me dar “assessoria técnica”, indo comigo nos lugares fazer os testes necessários, tratando-se de um produto usado e do qual eu tinha total desconhecimento.  Com câmera em mãos agora devia achar um parceiro que me auxilia-se. Lembrei-me de Fernando Carvalho, que uns oito anos atrás tinha fotografado minhas interações espontâneas na rua. Ele topou a proposta. O seu conhecimento de elementos de fotografia ajudaram bastante nas escolhas, tipo a compra do cartão de memória, a melhor lente a ser usada, etc. Optamos por filmar com uma só câmera, em mãos, com microfone externo plugado à mesma.

O roteiro do vídeo foi tomando forma no percurso. Tínhamos um esboço que incluía o processo do material reciclável por inteiro, mas esbarramos com pessoas que tiram o seu sustento do ato de catar, então focamos mais neles.

Entrevistar os catadores de rua é complicado já que não dá para querer marcar um horário e local determinado. Como eles vivem o dia a dia, tem que ser feito de forma espontânea, na hora. Sendo assim, até entender o funcionamento levamos vários canos por diversos imprevistos. Isso, além das complicações com a chuva ou com sol em excesso, já que a maioria das imagens foi externa.

Da metade para frente do processo saí sozinho de bicicleta pelas ruas registrando imagens, às vezes com uma mão no guidão e a outra segurando a câmera. Desse jeito achei no bairro Vila Maria à Lucia, catadora à qual entrevistei. Noutro dia sai de noite flagrando cenas da cidade e do cotidiano dos catadores. Filmei o trânsito em horário de pico e à multidão de pessoas no calçadão do centro, aos sábados, assim como peguei imagens de catadores que moram nas ruas. Entrevistei Seu José, meu vizinho que construiu um pomar que é frequentado pelas pessoas que moram nos prédios que ficam enfrente á APP - Área de Preservação Permanente - situada no bairro onde moro. Achei até a plaquinha que fecha nossa história, colocada por algum vizinho local onde está escrito “Repense – Re use – Recicle”...

Finalmente veio a parte mais trabalhosa, que é a da edição. É ali onde a gente constrói à história. Portanto, para facilitar, a minha primeira tarefa foi separar as imagens em casa, classificando-as em pastinhas de acordo com as cenas. Depois, a segunda tarefa foi a de decupar as imagens, anotando o trecho do registro que íamos utilizar, além da ordem, da criação do texto quando foi preciso, da música, etc.

A edição do vídeo foi realizada Junto ao meu amigo André Pontes no estúdio dele, num processo que demorou longas jornadas de trabalho, onde, além de tentar reduzir ao máximo os estouros de luz de registros feitos por dois iniciantes na arte de filmar, criamos a trilha sonora, tudo feito de forma artesanal.  À ideia era que á música tornasse à história pulsante, como forma de manter a atenção do nosso público alvo que são às crianças e adolescentes, alunos de escolas da rede pública de ensino da cidade.

De acordo com o André, à música é que dá o tom.

“Pega uma cena de drama de cinema, por exemplo, e tira á musica de fundo; ela vai perder o sentido”.




Link do Vídeo Documentário na íntegra no Youtube:

https://youtu.be/lfP4r55m4uI

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Teatro Popular de Rua, “Arte do Improviso”.

 

Diálogo:

- Ensaiou Mestra Ceiça?

- Pensei na história, o que não deixa de ser um “ensaio”...

Ensinamentos de cultura nordestina. Teatro popular, arte do improviso, no melhor sentido da palavra.

A proposta é “Jogar” com o que há, desde o espaço físico onde vai ser apresentada a história até às circunstâncias dadas.

Cria-se o que não se possui, o que de certa forma é objeto de nossa ansiedade e de nossa esperança, o que magicamente permite nos evadir da dura realidade cotidiana. “É nisso que a arte se parece ao sonho”. (Ernesto Sábato).

O jogo: “uma atividade sem objetivos conscientes, um estado de disponibilidade que escapa a toda intenção utilitária, livre e sem regras (...) um estado de ruptura do ser individual ou social, no qual o único que não se questiona é a arte”.

(Texto extraído de matéria “O teatro de rua é teatro popular?”, de André Carreira Universidade do Estado de Fortalecendo a autoestima: Santa Catarina).

Apresentando tanto em comunidades carentes, como em “casas do idoso”, em centros culturais, escola, ou em salas de espetáculos, sempre acaba prevalecendo à linguagem do espontâneo, da interação, do teatro de rua.

A conclusão é que quando a pessoa se sente ouvida e consegue interagir com as atividades que lhe são apresentadas a sua autoestima fica fortalecida, o que a ajuda a sentir-se integrada ao grupo social ao qual pertence. Nisso, tanto à obra quanto o artista passam a ser um meio...

“Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade”.(João Maria Rilke em “Cartas a um jovem poeta”.).


 Apresentação em Bairro Lagoa Azul II, Jacareí SP - 19-06-2022

                                                   Apresentação Bairro Lagoa Azul II -  pela FC Jacareí (19/06)

/Link vídeo "Sarau Poético Musical" em Casa do Idoso Sul - em São José dos Campos https://fb.watch/dZUOxDrJ9Q/

 https://www.facebook.com/MimicoAndarilho

                                                             

sábado, 14 de maio de 2022

Paraíba “Rio Bonito”

 

"Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar..."

(Trecho do Poema “O Rio” de João Cabral do Melo Neto)

No poema acima, o autor fala de rio situado na região Nordeste. Claudio Luiz, no seu espetáculo, “Paraíba, Rio Bonito”, faz referência ao nosso rio, o Paraíba do Sul, que surge da confluência do rio Paraitinga com o rio Paraibuna e aqui atravessa à zona norte da cidade de São José dos Campos.

O espetáculo é muito inspirador e foi criado com à maior dificuldade, com certeza recebendo a força de Nossa Senhora Aparecida, à qual traz estampada no fundo do chapéu “Itajiba”, o personagem da peça. Cláudio acabou incorporando à hecatombe que aconteceu na sua vida, quando teve que tratar de um câncer agressivo que atingiu sua garganta e glândulas, mudando sua aparência rotundamente. Na peça, ele encarna um senhorzinho caipira que vem falar sobre preservação do meio ambiente para o público, tomando como exemplo o rio Paraíba, valorizando as histórias contadas pelos mais velhos, o tempo da roça e a cultura popular. Como apoio ele traz para cena “Itororó”, seu boneco “burrinha”, com a qual  conversa de forma carinhosa, como se fosse um animalzinho de estimação.

O trato “humano” entre as pessoas, o cuidado como o rio e com a natureza em geral, a reciclagem do lixo, à importância de se preservar a mata nativa e as nascentes, que ainda resistem em várias regiões da cidade, etc.

Achei em Cláudio Luiz um companheiro de batalha. Mais um errante andarilho sonhador...

"Sou viajante calado,
para ouvir histórias bom,
a quem podeis falar
sem que eu tente me interpor;
junto de quem podeis
pensar alto, falar só.
Sempre em qualquer viagem
o rio é o companheiro melhor..."

(Trecho do mesmo poema do começo)

 

                                                            Foto de Paulo Amaral
 


domingo, 24 de abril de 2022

Relembrando bons momentos...

Quando olho para mim não me percebo. 

Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio ás vezes ao sair

Das próprias sensações que eu recebo.


O ar que respiro, este licor que bebo,

Pertencem ao meu modo de existir,

E eu nunca sei como hei de concluir

As sensações que a meu pesar concebo


Nem nunca, propriamente reparei,

Se na verdade sinto o que sinto. Eu

Serei tal qual pareço em mim? Serei


Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,

Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.


(Poesia de "Alvaro de Campos" - Fernando Pessoa).


No finzinho da Pandemia, após dois anos de ausência, volto para Campos do Jordão para retomar o trabalho nas ruas. Ainda em período de transição, encontro vinte por cento das pessoas de máscara. Com certeza vários deles devem ter perdido algum conhecido o ente querido para o vírus. O lugar mudou muito e reflete claramente o Brasil de hoje, muita gente desempregada correndo atrás do pão de cada dia vendendo qualquer coisa para o público turista. Pessoas pobres de excursão de um dia indo gastar um pouquinho do pouco dinheiro que ganham para ficar andando sem sentido tirando fotos de tudo o que acham pelo caminho. Pessoas de classe média e classe média alta aglomeradas dentro de bares e restaurantes onde predomina o barulho e o álcool. Me pergunto, o que é que estou fazendo ali se sei que o meu trabalho não funciona na multidão?

Fiquei preso ao passado e a mim mesmo, cheio das boas lembranças do que outrora foi e hoje  não é mais...

O que me restou do final de semana? Dores no corpo e a certeza de ter entregue o meu carinho para várias pessoas, especialmente crianças, que levaram consigo um sorriso no coração...


                                                         Campos do Jordão, 2012.